REFORMA TRIBUTÁRIA E OS GASTOS COM HOTELARIA: EQUIVOCOS E DISTORÇÕES NAS REGRAS DE NÃO CUMULATIVIDADE PLENA
22 de setembro de 2025
A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 deu início à mais ampla reforma do sistema tributário brasileiro das últimas décadas, substituindo impostos indiretos atuais por dois novos tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Embora a promessa seja de simplificação e de neutralidade, os efeitos concretos da reforma podem representar aumento significativo de carga tributária para determinados setores e operações.
Entre os aspectos pouco discutidos até o momento, destaca-se o impacto para empresas que adquirem serviços de hotelaria no exercício de suas atividades, especialmente aquelas que mantêm rotinas de viagens corporativas, deslocamentos operacionais e estadias recorrentes de funcionários.
Este artigo analisa a mudança na tributação dos serviços de hotelaria sob a ótica das empresas tomadoras — e não das prestadoras —, apontando os riscos de aumento de custos diante da vedação ao crédito de IBS e CBS e de outras alterações relevantes. Também destaca o impacto sobre o setor de petróleo e gás, que assume despesas expressivas com hospedagem em suas operações offshore.
Tributação atual do setor hoteleiro e efeitos ao adquirente
Atualmente, os serviços de hotelaria são tributados pelo Imposto de Serviço (ISS) e pelas contribuições do PIS e da Cofins. Sendo o ISS um tributo municipal, sua alíquota pode variar conforme cada legislação, estabelecida a taxa mínima de 2% e a máxima de 5%. Já o PIS e a Cofins seguem o regime cumulativo para o setor hoteleiro, o que determina alíquotas de 0,65% e 3%, respectivamente.
Assim, podemos estabelecer a premissa de que a tributação máxima alcançada pelo setor hoteleiro atualmente é de 8,65% sobre o serviço prestado, podendo ser reduzida em até 5,65% em municípios com ISS de 2%.
Do ponto de vista da empresa adquirente do serviço (pessoa jurídica), a sistemática do ISS não permite creditamento, enquanto a do PIS/Cofins depende do regime tributário e da interpretação legislativa sobre os critérios de insumo para determinação do seu aproveitamento. Caso seja possível o reconhecimento desse crédito, a empresa pode recuperar 9,25% do custo do serviço tomado [1], conforme as regras de não cumulatividade vigentes.
Importante observar que a possibilidade de reconhecimento de créditos de PIS e Cofins sobre insumos na atividade empresarial segue sendo uma questão de interpretação e de divergência, seguindo o critério de essencialidade. No caso dos gastos com hospedagem, a Receita Federal já se manifestou em algumas ocasiões contra os créditos desta natureza, mesmo em casos de dispêndios com funcionários no deslocamento para a prestação de serviços [2].
Em resumo, para empresas que não podem recuperar créditos atualmente, tem-se uma carga tributária total sobre os serviços hoteleiros que pode variar de 5,65% a 8,65%. Já para as empresas que podem recuperar os créditos de hotelaria, observa-se uma “carga tributária negativa”, na qual o valor do crédito recuperado é maior do que a carga tributária repassada pelo prestador do serviço.
IBS, CBS e o novo tratamento dos serviços de hotelaria
Com a substituição de PIS, Cofins, ICMS e ISS pelos novos tributos sobre bens e serviços, a CBS e o IBS, os serviços de hotelaria passam a ser tributados sob um novo regime, com alíquota padrão estimada em cerca de 26,5%, mas com possibilidade de aplicação da alíquota reduzida em determinados setores e atividades.
No caso do setor hoteleiro, as alíquotas do IBS e CBS ficam reduzidas em 40% [3]. Apesar dessa redução — o que equivaleria a uma alíquota efetiva estimada em 15,90% — a mudança na sistemática de crédito impõe um obstáculo relevante: o adquirente do serviço de hotelaria não poderá se creditar do valor pago a título de IBS e CBS, ainda que esse serviço seja essencial na sua atividade operacional, conforme restou estabelecido no artigo 283 da LC 214/2025:
“Art. 283. Fica vedada a apropriação de créditos de IBS e de CBS pelo adquirente dos serviços de hotelaria, parques de diversão e parques temáticos.”
Esse tratamento se justifica, segundo a reforma, pelo caráter de consumo final dos serviços de hospedagem e critérios similares a outras restrições ao crédito sobre bens e serviços de uso ou consumo pessoal. No entanto, na prática, empresas que não contratam hospedagem como atividade-fim, mas como parte necessária de sua operação — como ocorre em viagens de negócios, deslocamentos técnicos ou logística de pessoal — estarão sujeitas a um aumento efetivo de custo tributário.
Assim, mesmo com alíquota reduzida, o novo regime pode representar um acréscimo de até 10,25% na alíquota total, e de até 19,50% [4] no custo final da hospedagem para empresas, já que o valor do imposto será embutido no preço e não recuperável.
Além disso, a proibição ao crédito representa uma quebra do princípio da não-cumulatividade plena, especialmente em um sistema que se pretende uniforme e neutro, onde se deveria permitir o creditamento de acordo com o valor do tributo destacado no documento fiscal — ainda que com alíquota reduzida. Neste ponto, podemos avaliar possíveis questionamentos sobre a constitucionalidade do artigo 283 da LC 214/2025, visto que a não-cumulatividade plena e a neutralidade do IBS e CBS são garantias constitucionais, cabendo à Lei Complementar apenas excetuar exclusivamente as operações consideradas de uso ou consumo pessoal, conforme determina a própria Constituição:
“Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. §1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte: VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição”.
É possível que o legislador não tenha considerado que alguns setores empresariais possuem gastos relevantes com hotelaria que vão além das viagens comerciais ou de negócios e envolvem o deslocamento expressivo de funcionários técnicos para a prestação de serviços. Essa vedação aos créditos acaba gerando uma distorção do próprio texto constitucional introduzido pela reforma tributária.
Assim, avaliamos adiante possíveis impactos de incremento de carga tributária para empresas em que os gastos com hotéis e hospedagens são recorrentes e representam uma rubrica relevante em seu custo operacional, como é o caso do setor de petróleo, que no Brasil opera preponderantemente em águas marítimas e com logística hoteleira necessária para o embarque e desembarque de pessoal offshore.
Impactos no setor de petróleo e gás
Entre os setores mais sensíveis à essa mudança, destaca-se o de petróleo e gás, especialmente na exploração offshore. Nesse segmento, é comum a realização de escalas regulares de embarque e desembarque de funcionários, exigindo:
– Hospedagem de equipes em trânsito; – Deslocamentos frequentes entre bases logísticas e unidades offshore; – Estadias técnicas para treinamentos e certificações periódicas;
Adicionalmente, os consórcios que operam campos de petróleo arcam com despesas significativas de hotelaria offshore em embarcações e plataformas de produção, que incluem serviços de manutenção e limpeza das acomodações utilizadas pelos trabalhadores a bordo [5].
Essas despesas são operacionais — essenciais ao funcionamento da atividade principal — mas não serão consideradas aptas a gerar crédito no novo modelo do IBS e da CBS. Isso pode representar um aumento significativo do custo operacional, especialmente para empresas com grande volume de mobilização de pessoal. Assim, atividades que tradicionalmente gerenciam grandes centros logísticos, como plataformas marítimas, unidades de perfuração, empresas de apoio marítimo e as próprias operadoras dos campos de petróleo serão diretamente afetadas.
A partir de uma análise de gastos de empresas do setor, percebe-se que as despesas com hotelaria podem ultrapassar dezenas de milhões de reais por ano, tornando o impacto fiscal material e estratégico. No caso das sondas de perfuração, a amostragem aponta custos médios de cerca de R$ 9 milhões anuais por unidade em atividade marítima. Com a impossibilidade de recuperar créditos tributários no novo regime, cada sonda deverá registrar um acréscimo aproximado de R$ 1,8 milhão por ano em despesas.
Valores semelhantes de gastos com hotelaria também foram observados em empresas de operação de plataformas de petróleo FPSO, na ordem de materialidade. Assim, considerando que atualmente temos somadas aproximadamente 100 unidades de perfuração e de produção em águas marítimas em atividade no Brasil, podemos estabelecer um efeito final na ordem de R$ 200 milhões em aumento de carga tributária, advinda dessa restrição ao creditamento dos serviços de hotelaria, somente para essas duas atividades analisadas.
Conclusão Entre erros e acertos na reformulação do sistema tributário sobre consumo de bens e serviços, pode-se destacar algumas situações que ainda merecem atenção, especialmente com um olhar mais setorial para distorções de conceitos gerais aplicados na reforma tributária.
No caso analisado neste artigo, observamos que o legislador analisou a atividade de hotelaria sob um ângulo limitado aos gastos com viagens administrativas ou comerciais, vedando um crédito tributário essencial ao princípio da não-cumulatividade para empresas que possuem gastos relevantes e operacionais com a contratação de serviços de hotelaria em geral.
Assim, apesar de incluir a atividade de hotelaria na lista de regimes diferenciados com redução de alíquota, nota-se que o legislador mirou somente em trazer um benefício ao setor de turismo, notadamente direcionado ao consumidor final, mas não observou o efeito contrário e de aumento efetivo de carga tributária para o setor empresarial.
Ainda que se possa argumentar a vedação do direito ao crédito do IBS e CBS destacado em documento fiscal sob o prisma de não ser uma despesa operacional, o que já argumentamos não ser verdade em alguns setores, os demais dispositivos da LC 214/2025 que restringem os créditos para itens de consumo pessoal já deveriam ser suficientes para inibir excessos ou distorções sobre a motivação dos gastos com viagens de diretoria, sócios ou outros benefícios indiretos a funcionários.
Sob o olhar setorial da atividade de petróleo e gás, o gigantesco impacto é estimado em mais de R$ 200 milhões em aumento de carga tributária para as atividades de perfuração e produção offshore — sem incluir gastos das próprias operadoras dos campos e suas subcontratadas. Outras atividades relacionadas também terão forte impacto, como é o caso do setor de apoio marítimo, que atua com grande logística hoteleira de funcionários para as embarcações.
Desta forma, conclui-se que, neste ponto específico, o princípio da neutralidade e da não-cumulatividade plena defendidos pela reforma tributária e estabelecidos pela Emenda Constitucional 132/2023 não estão sendo garantidos para as empresas que precisam contratar serviços de hotelaria no desenvolvimento da sua atividade operacional, com especial destaque aos setores marítimo e de petróleo e gás.
[1] Percentual de creditamento de 1,65% para PIS e 7,60% de Cofins, conforme art. 169 da IN 2.121/2022.
[2] Solução de Consulta Cosit 211/2023 – “(…) as despesas com passagens aéreas, alimentação e hospedagem dos funcionários (empregados ou contratados) que realizam, presencialmente, os serviços em local do tomador destes serviços, não são consideradas insumo nos termos do inciso II do caput do art. 3º da Lei nº 10.833, de 2003, e, portanto, incabível o aproveitamento de créditos da não cumulatividade da Cofins.”
[3] LC 214/2025. Art. 281 – As alíquotas do IBS e da CBS relativas às operações de que trata este Capítulo ficam reduzidas em 40% (quarenta por cento).
[4] Percentuais calculados considerando o cenário de 5,65% de alíquota atual (ISS + PIS/Cofins) e recuperação de 9,25% de crédito de PIS/Cofins pelo adquirente.
[5] Atualmente este tipo de serviço vem sendo classificado pelos prestadores como “serviço de hotelaria”, contemplando o mesmo código de serviço e tributação de hospedagem e hotelaria regular.
Eduardo Pontes é advogado e sócio fundador da Infis Consultoria.
Fonte: www.conjur.com.br/
ENTRE EM CONTATO
Dê hoje o primeiro passo para a transformação digital da sua empresa
+55 11 3280-2600
contato@standardit.com.br
Av. Queiroz Filho, 1700, Vila B Escritório 30 - Vila Leopoldina, São Paulo - SP, 05319-000